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Jefté e o sacrifício de sua filha: a precipitada interpretação

Durante muito tempo, a acirrada disputa teológica sobre o voto de Jefté, em Juízes 11.29-40, sempre tendeu mais para a interpretação do sacrifício de sua filha. Entretanto, alguns teólogos reformados mais recentes igualmente respeitados, como o especialista em puritanismo Joel Beeke, têm oferecido outra interpretação mais condizente com a narrativa em torno do personagem Jefté.¹ Este homem, descrito por muitos como um precipitado e tolo, deveria ser visto, na verdade, de outra forma, exatamente como a própria Escritura o menciona, com honra e dignidade de um sábio homem de Deus. "O Senhor enviou a Jerubaal, e a Baraque, e a Jefté, e a Samuel; e vos livrou das mãos de vossos inimigos em redor, e habitastes em segurança." (1 Samuel 12.11) 

"E que mais direi? Certamente, me faltará o tempo necessário para referir o que há a respeito de Gideão, de Baraque, de Sansão, de Jefté, de Davi, de Samuel e dos profetas," (Hebreus 11.32) 

No primeiro texto, Jefté é mencionado como uma dos juízes que manteve Israel a salvo. Já no segundo texto, Jefté é alçado à famosa galeria de heróis da fé, homens que foram notáveis por sua confiança em Deus. Ora, em nenhum lugar da Bíblia, Jefté é descrito como um homem pagão, tolo e precipitado. Por quê? Exatamente porque em toda a narrativa de sua vida como juiz não houve menção de grave pecado. Onde poderia ter, veremos que a correta interpretação elimina essa possibilidade. Davi, por exemplo, pecou e houve o registro de seu erro e correção. Sansao pecou e houve o registro de seu erro. Mas quanto a Jefté, após seu voto e cumprimento, não houve qualquer correção ou menção de erro. Para melhor compreensão do leitor, porei abaixo a perícope principal do texto. Caso o leitor já esteja bem familiarizado, fique a vontade para pular até o desenvolvimento. 

"Então, o Espírito do Senhor veio sobre Jefté; e, atravessando este por Gileade e Manassés, passou até Mispa de Gileade e de Mispa de Gileade passou contra os filhos de Amom. Fez Jefté um voto ao Senhor e disse: Se, com efeito, me entregares os filhos de Amom nas minhas mãos, quem primeiro da porta da minha casa me sair ao encontro, voltando eu vitorioso dos filhos de Amom, esse será do Senhor , e eu o oferecerei em holocausto. Assim, Jefté foi de encontro aos filhos de Amom, a combater contra eles; e o Senhor os entregou nas mãos de Jefté. Este os derrotou desde Aroer até às proximidades de Minite (vinte cidades ao todo) e até Abel-Queramim; e foi mui grande a derrota. Assim, foram subjugados os filhos de Amom diante dos filhos de Israel. Vindo, pois, Jefté a Mispa, a sua casa, saiu-lhe a filha ao seu encontro, com adufes e com danças; e era ela filha única; não tinha ele outro filho nem filha. Quando a viu, rasgou as suas vestes e disse: Ah! Filha minha, tu me prostras por completo; tu passaste a ser a causa da minha calamidade, porquanto fiz voto ao Senhor e não tornarei atrás. E ela lhe disse: Pai meu, fizeste voto ao Senhor ; faze, pois, de mim segundo o teu voto; pois o Senhor te vingou dos teus inimigos, os filhos de Amom. Disse mais a seu pai: Concede-me isto: deixa-me por dois meses, para que eu vá, e desça pelos montes, e chore a minha virgindade, eu e as minhas companheiras. Consentiu ele: Vai. E deixou-a ir por dois meses; então, se foi ela com as suas companheiras e chorou a sua virgindade pelos montes. Ao fim dos dois meses, tornou ela para seu pai, o qual lhe fez segundo o voto por ele proferido; assim, ela jamais foi possuída por varão. Daqui veio o costume em Israel de as filhas de Israel saírem por quatro dias, de ano em ano, a cantar em memória da filha de Jefté, o gileadita." (Juízes 11.29-40) 

Note que eu não separei o texto, como muitos costumam fazer, a partir do verso 30, que é onde se inicia a narrativa do voto. Eu voltei um verso antes justamente para enfatizar que toda a decisão de Jefté foi após ele ter sido possuído pelo Espírito Santo. Em termos claros, este voto é um efeito da atuação do Espírito Santo. Alguém teria coragem de atribuir erro a Deus? Creio que não. Em outras ocasiões, no livro de Juízes, quando o Espírito Santo teve a mesma atuação, foi para fazer o teste da porção da lã, com Gideao, (6.34-36), e para empoderar Sansão, seja para matar um leão ou os filisteus (14.6, 9; 15.14, 19). Em nenhum caso, o Espírito Santo atuou incitando algum erro ou atitude precipitada. 

Mas e quanto a ideia corrente de que Jefté esperava que saísse de sua casa algum animal, e não alguma pessoa? Podemos refutar essa tese com os seguintes pontos: era costume da época que, após alguma guerra, as mulheres saíssem de suas casas em uma espécie de procissão, em comemoração à vitória. Vemos isso em passagens como Êxodo 15.20 e 1 Samuel 18.6. Como era costume corrente, Jefté provavelmente sabia disso. Ademais, é possível defender que Jefté sabia que sairia um ser humano pela porta de sua casa através da própria gramática do texto. No verso 31, ele diz: "quem primeiro da porta da minha casa me sair ao encontro." Outra tradução possível é "aquele primeiro da porta da minha casa me sair ao encontro." Essa expressão "aquele" já indica algum ser humano, mas outra expressão ratifica esse ponto, já que "me sair ao encontro" era usada apenas para seres humanos, nunca para animais. Então, ao fazer o voto, Jefté sabia que algum ser humano sairia pela porta. 

Mas e a linguagem de sacrifício e holocausto? E o lamento da filha? Jefté rasgou as suas vestes quando a viu sair de casa. Não seria isso um indicativo de que isso não era o esperado por ele? Aqui está o ponto de reflexão para uma reinterpretação um pouco diferente do convencional. A literalidade interpretativa, certamente preferível na maior parte dos livros bíblicos, fez que muitos logo concluíssem pelo sacrifício humano. Todavia, há outros exemplos bíblicos nos quais a linguagem de sacrifício é usada de modo simbólico, indicando uma consagração completa ao Senhor. Em Êxodo 29 e Levítico 8, por exemplo, Arão e seus filhos são simbolicamente oferecidos como sacrifício ao Senhor, obviamente não literalmente, mas representativamente como culto pessoal a Deus. Esse tipo de culto foi o mesmo que Davi sentiu de oferecer quando estava se rasgando em arrependimento diante de Deus, por conta de seu pecado de adultério com Bate-Seba: "Sacrifícios agradáveis a Deus são o espírito quebrantado; coração compungido e contrito, não o desprezarás, ó Deus." (Salmo 51.17). Ademais, um dos textos mais conhecidos quando o assunto é santidade e entrega total se encontra em Romanos 12.1: "Rogo-vos, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, que apresenteis o vosso corpo por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional." Sabemos que este sacrifício não é literal, mas simbólico. Além disso, como a palavra "holocausto", usada por Jefté, nem sempre significa um sacrifício de sangue, mas também uma "total dedicação", outra tradução possível seria: “será do SENHOR, e eu o oferecerei para uma completa dedicação ao SENHOR”. Portanto, há exemplos tanto do Antigo quanto do Novo Testamento que apontam para uma espécie de sacrifício pessoal, em entrega absoluta a Deus. Com isso em mente, voltemos ao caso de Jefté. 

Jefté estava sob orientação do Espírito Santo; indo para uma guerra justa; sabia que sairia um ser humano de sua casa e, além disso, tinha ciência da proibição de sacrifícios humanos (Deuteronomio 12.31; 18.9-12; 2 Reis 3.27; 23.10; Isaías 57:5). Acima de tudo isso, já vimos que o testemunho das Escrituras está favorável à pureza de Jefté. Esses pontos mencionados já seriam suficientes para concluirmos nessa direção simbólica de interpretação. Mas há mais evidências internas que corroboram com essa visão. Sobre qual lamento se fundamentou a reação da filha? Sobre a possível morte? Não, mas sobre sua virgindade. Ela pede um tempo de 2 meses para poder chorar "a sua virgindade". Não há qualquer menção de sacrifício humano. Por fim, o verso 39 é conclusivo: 

"Ao fim dos dois meses, tornou ela para seu pai, o qual lhe fez segundo o voto por ele proferido; assim, ela jamais foi possuída por varão. Daqui veio o costume em Israel". 

Jefté cumpriu seu voto e, como consequência, sua filha jamais perdeu sua virgindade. Isso nos leva a inferir que seu voto consistia em oferecer como sacrifício vivo, santo e agradável um membro de sua família, como oferta ao serviço integral a Deus, sem qualquer impedimento de um relacionamento. Novamente, tal como no exemplo de sacrifício simbólico, há outras passagens que também fundamentam essa interpretação de entrega total a Deus (Êxodo 38.8; 1 Samuel 2.22; 1 Samuel 1.11, 22-28). 

Por fim, quanto ao último verso, no qual é dito que as filhas de Israel iam anualmente "lamentar" a filha de Jefté, assim diz Joel Beeke: 

"O último verso de Juízes 11 diz que as filhas de Israel iam anualmente para “lamentar” a filha de Jefté. A palavra traduzida aqui como “lamentar” não é traduzida deste modo em nenhum outro lugar na Bíblia. Ao invés disso, ela é entendida como “ensaiar” ou “comemorar”. Assim, as filhas de Israel não lamentaram a morte da filha de Jefté. Elas comemoraram sua dedicação ao serviço de Deus, o qual envolvia a submissão total do seu coração."² 

Portanto, diferente do que muitos pensam, Jefté não fez nenhum voto precipitado, muito menos sacrificou a sua filha. Pelo contrário, como um bom líder e cuidadoso pai, consagrou-a ainda mais a Deus. Não foi à toa que este grande líder foi alçado a um dos exemplos de homens de fé. 

Notas 

1. Um desenvolvimento desse ponto de Joel Beeke pode ser encontrado no seguinte link <https://spurgeonline.com.br/artigos/teria-jefte-sacrificado-a-propria-filha/> 

2. Ibid.

Rodrigo Caeté

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