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As duas árvores. Do bem e do mal, e da vida


No Jardim do Éden, além das "árvores agradáveis à vista e boas para alimento" (Gênesis 2.9), duas eram especiais para o cumprimento de todo propósito divino, ficando conhecidas como a "árvore do conhecimento do bem e do mal" e "árvore da vida". Afinal, por que essas árvores foram postas lá? Qual é a diferença entre uma e outra? Por que, após a queda, Deus impediu o homem de ter acesso à árvore da vida (Gênesis 3.24)? São essas e outras perguntas que pretendo responder neste texto. 

1. Qual é a diferença entre a árvore do conhecimento do bem e do mal e a árvore da vida? 

1.1 A Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal 

Separemos a significação de cada uma, a fim de verificarmos essa diferença. Vejamos o texto bíblico referente à árvore do conhecimento do bem e do mal: 

"Do solo fez o Senhor Deus brotar toda sorte de árvores agradáveis à vista e boas para alimento; e também a árvore da vida no meio do jardim e a árvore do conhecimento do bem e do mal... E o Senhor Deus lhe deu esta ordem: De toda árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás; porque, no dia em que dela comeres, certamente morrerás." (Gênesis 2.9;16-17) 

Deus criou essa árvore, e, como tudo o que ele faz é bom, devemos reconhecer que essa sua criação glorificou a si mesmo e serviu de benção aos homens. Antes de prosseguirmos, preciso aparar uma questão pueril que se levanta: que tipo de árvore era aquela? Essa é uma pergunta descabida e sem propósito santo. Ainda que alguns conjecturem em favor de uma figueira ou macieira, por exemplo, a Bíblia não especifica o tipo de árvore. Um dos maiores ensinamentos da Escritura tem o objetivo de nos manter humildes: "quando a Bíblia se cala, eu me calo". Portanto, não é propósito desse texto tergiversar diante de questões sérias como esta da Bíblia. 

Mas, então, por que esse nome "árvore do conhecimento do bem e do mal”? Havia, formalmente, o bem e o mal nela? Se sim, alguns precipitados logo dirão que, então, Deus criou ontologicamente o mal, algo que negamos com veemência. Respondemos que não havia, em sua composição, qualquer bondade ou maldade. O mal não brotou a partir da deglutição do fruto proibido. Esse nome - árvore do conhecimento do bem e do mal - lhe foi dado com vistas a apresentação de um dos primeiros sacramentos, pois esta árvore, juntamente com as ordens divinas expressas sobre ela, era um sinal de lei para que o homem não desejasse experimentar, em pé de igualdade, o mal como conhece o bem. Ao comer do fruto, o homem teria o profundo conhecimento da bondade da obediência, assim como, o que esta árvore sinalizava com esta cerca de lei, a experiência dura e cruel do mal da desobediência. Essa experiência palpável da deglutição do fruto o homem já tinha através de outras árvores, mas como havia esta lei especificamente nesta árvore, sua experiência palpável trouxe a si a experiência da maldade não apenas eticamente, ou filosoficamente, ou mesmo teologicamente, mas também palpavelmente, onde o corpo já começava a sentir as dores da queda e a morte da vida que havia da obediência. Foi, então, que o homem sentiu, através de seu mal, o quanto de bem acabara de perder, para sempre. Não há tragédia maior na história da humanidade do que esse fatídico dia do mal. 

Dito de forma popular, esta árvore tinha a função de provar a obediência e o amor do homem. Por isso, Deus pôs a lei, conforme lemos, de não comer do fruto dessa árvore, não porque ela em si fosse diferente materialmente das outras, mas apenas para indicar um chamado específico à obediência. Como diz Tertuliano, “aquela lei primordial dada a Adão no Paraíso era, por assim dizer, a matriz de todos os preceitos de Deus”¹ Em Adão, estaria toda a nossa obediência e a prova de nosso amor por Deus, assim como sua desobediência mostraria o quanto o homem orgulhosamente preferiria seu próprio caminho através de seu conhecimento do mal. Esta foi a nossa terrível decisão. Aquela desobediência foi o maior grito de independência, mas que gerou a pior das mortes. 

Além desse sacramento da lei, que sinaliza um perigo na desobediência, esta árvore também cumpria a prova da existência do livre árbitro² real no homem (Aos calvinistas ansiosos, que aprenderam sobre livre árbitro através de memes na internet, peço que leia a nota ao fim). Deus impôs uma lei que Adão tinha a capacidade de cumprir em razão de sua liberdade. Mas, ao contrário, usando de sua liberdade, Adão seguiu pelo descumprimento, provando, infelizmente, que tal fruto seria mais desejável que o próprio Deus. 

Obedecer a Deus seria difícil? Deus impôs uma lei difícil? Essa era uma prova absurdamente complicada ao homem? Afirmamos que não. Deus não pediu um sacrifício de um filho, como foi a Abraão. Pediu apenas que não comece de um fruto específico. Então, a obediência seria tão fácil quanto perfeitamente possível, e qualquer desculpa seria vergonhosa. Essa é apenas mais uma das razões por que a condenação, diante dessa transgressão, foi justa. Nas palavras de Santo Agostinho: 

"Quem quer que pense que a condenação de Adão foi grande demais ou injusta, certamente não sabe medir a grande iniquidade de pecar onde havia tão grande facilidade para não pecar; portanto, assim como a obediência de Abraão é merecidamente celebrada como grande, porque a morte de seu filho, algo dificílimo, lhe foi ordenada, assim também, no paraíso, a desobediência era infinitamente maior, visto que aquilo que foi ordenado não era difícil”³ 

Portanto, Adão pecou mesmo diante de tanta facilidade para não cair. Esta, então, é a árvore do conhecimento do bem e do mal, sendo um sacramento de prova, uma lei que atesta a liberdade do homem, mas que foi usada para o pecado tão gravemente onde havia tão grande possibilidade de obediência, visto que toda a bondade divina já estava sobre o homem. Agora, e quanto à árvore da vida? Vejamos abaixo. 

1.2 A árvore da vida 

Assim como não havia propriedades do mal ou do bem na árvore anterior, o mesmo devemos dizer da árvore da vida, não havendo qualquer substância espiritual que gerasse vida no homem. Este já a recebera do Senhor, e não tinha nenhuma insuficiência quanto à vitalidade eterna. Não há nada escrito que indique, como alguns pensam, que esta árvore gerasse vida ou impedisse doenças ou mesmo o pecado. Igualmente, nada indica que o impedimento de acesso a tal árvore, após a queda, apontava para a possibilidade de reabilitação se o homem comece do fruto da árvore da vida. Antes do desenvolvimento desses pontos, vejamos o texto bíblico: 

"Do solo fez o Senhor Deus brotar toda sorte de árvores agradáveis à vista e boas para alimento; e também a árvore da vida no meio do jardim e a árvore do conhecimento do bem e do mal...E, expulso o homem, colocou querubins ao oriente do jardim do Éden e o refulgir de uma espada que se revolvia, para guardar o caminho da árvore da vida." (Gênesis 2.9; 3.24) 

A única lei proibitiva que Deus deu ao homem era concernente à árvore do conhecimento do bem e do mal. Quanto às demais, Adão poderia usufruir de todas, inclusive da árvore da vida. Em todas, portanto, ele se nutria, não havendo qualquer referência a uma nutrição fisicamente diferenciada em relação à árvore da vida. Ora, mas por que, então, esse nome? Assim como a árvore anterior indicava um sacramento, esta também se apresenta como o sacramento da vida. Todas as demais árvores permitidas nutriam Adão, mas esta, em específico, nutria seu corpo e lhe garantia a imortalidade concedida como efeito da obediência quanto à  árvore do conhecimento do bem e do mal. Não era o fruto em si, como se fosse uma substância diferente, mas o sinal de sacramento, como contraponto ao sacramento da lei. 

Esta árvore era o símbolo máximo da vida em todos os aspectos. Comendo-a, o homem deveria se lembrar que a vida não provém de si mesmo, mas do Criador tanto da árvore quanto do próprio homem; deveria, ainda, se lembrar que a manutenção da vida depende do supremo mantenedor desta árvore, que influi também vida ao Adão; e deveria fazê-lo lembrar que o fruto da vida eterna sempre estava diante de si, algo desprezado diante da preferência por outra árvore. Uma das maiores tolices humanas foi trocar o bem pelo mal, algo que ainda ocorre hoje frequentemente. Graças a Deus, por Jesus Cristo, que se fez a revelação soberana da Árvore da Vida por toda a eternidade aos santos (Apocalipse 2.7; 22.2).

Como, então, entender a expulsão do homem do Jardim do Éden, havendo uma ênfase na proteção da árvore da vida feita pelos querubins? Essa proibição ao acesso faz a mente fértil concluir que o usufruto da árvore restauraria o homem ao seu estado original. Se, como vimos, a substância do fruto da árvore da vida era a mesma de qualquer outra árvore, a proibição não pode ser interpretada da forma como foi apresentada. Havia uma lei de escolha no Éden, e Adão decidiu pelo caminho da queda. Foi pela própria precipitação do primeiro homem, negando a vida, que a árvore da vida lhe foi negada. Essa proibição era uma cerca em diante do sacramento da eternidade da vida. Significava tanto uma publicização da decisão humana quanto uma punição justa de Deus. Deus não brinca de ser Deus, com regras e leis, e depois volta atrás. As duas árvores estavam disponíveis, uma foi escolhida e, então, a outra foi descartada pelo próprio homem. Quanto a esta questão, as palavras de Turretini são conclusivas: 

"Deus expulsa o homem do paraíso 'para que o homem não estenda a mão e tome também da árvore da vida, e coma, e viva para sempre' (Gn 3.22); daí não se pode inferir corretamente que havia nessa árvore um poder físico de tanta eficácia que pudesse (uma vez sendo seu fruto provado) resgatar da mortalidade até o homem em estado de pecado. Essas palavras denotam apenas a causa de sua expulsão do paraíso em virtude do pecado (pelo qual, como por sua própria culpa, ele se viu eliminado dessa árvore, que era a coisa significada). E assim ele não mais teria qualquer direito ao seu sacramento. Deus não fala com referência à coisa propriamente dita ou à sua concretização (como se essa árvore realmente preservasse a vida do homem mesmo depois de este pecar), mas em relação à opinião contrária de Adão, que poderia pensar assim, sem entender a verdadeira razão do nome. Portanto, para que não tentasse (ainda que em vão) tornar nula a ameaça de Deus, ele foi expulso do paraíso. Não que Deus desejasse a imortalidade ou a vida mais longa do homem, mas porque não era correto que ele desfrutasse mais tempo do sinal da imortalidade que havia perdido. Para esse propósito ele também quis colocar o querubim com uma espada flamejante junto ao portão do paraíso, a fim de que nossos primeiros pais se mantivessem longe tanto do jardim quanto da árvore."⁴ 

Tal proibição, então, era um sinal que indicava a vida que o homem perdeu, vindo a padecer a morte no corpo e na alma desde o primeiro momento da queda. Ao mesmo tempo em que os querubins protegiam a árvore da vida, o corpo do homem se encaminhava para a putrefação natural do pecado, até chegar à morte. 

2.2 Cristo, a Árvore da Vida 

Aquela árvore desprezada pelo primeiro Adão veio a ser ofertada graciosamente pelo Segundo Adão, Jesus Cristo. Este se interpôs entre Deus Pai e os descendentes do primeiro Adão e sofreu as consequências daquela expulsão do Jardim do Éden. Quando o véu do templo foi rasgado (Mateus 27.52), através do sacrifício de Cristo, fomos libertos de nosso maldito estado de expulsão e passamos, novamente, a ter acesso ao Paraíso final. A Árvore da Vida nos foi doada, e seu fruto tem gosto de Alegria. 

Aquele primeiro sacramento, que era um sinal da vida eterna, teve, em Cristo, seu próprio véu retirado. Vemos agora, pelas lentes da Palavra, que aquela árvore era uma sombra da Árvore da Vida chamada Jesus Cristo. Este é a real fonte de toda a vida, através do qual todas as coisas foram criadas (João 1.3; Colossenses 1.16). Nele, estava a vida (João 1.4), e todos os que escolhem a morte agora tinha esperança de acesso à vida eterna. Jesus, portanto, é a nossa Suprema Árvore da Vida, o maior prêmio doado a cada eleito, para toda a eternidade. Todo aquele que se alimenta dele, certamente, jamais terá fome. 

Finalizando este texto, podemos concluir que aquelas duas árvores, como sacramentos, serviam como prova de obediência, indicando o dever de todo homem - árvore do conhecimento do bem e do mal - e sinal de galardão como efeito da obediência e manutenção da santidade - árvore da vida. Tendo se vislumbrado pelo desejo de ser Deus, caindo na astúcia da Satã, o homem sucumbiu diante do primeiro sacramento, vindo a perder as benesses do segundo. Todavia, a Suprema Árvore da vida deu a sua própria vida para que a morte fosse morta. Hoje, os santos têm livre acesso ao Paraíso, come do fruto da Árvore da Vida, e, tenho certeza que nenhum tem fome ou necessidades na alma. 

A ti, Senhor, glória eterna, e minha gratidão pessoal por tão grande Evangelho, que salvou um necessitado pecador como eu. 

Notas 

1. Esta citação de Tertuliano se encontra no excelente "Compêndio de Teologia Apologética", de François Turretini, organizado por James T. Dennison Jr., volume 1, 1 edição em 2011, p. 723. 

². A Internet trouxe muita publicidade sobre muita teologia boa. Dou graças a Deus por ter aprendido bastante coisa do calvinismo usando este meio. Todavia, um dos grandes desserviços quanto a este tema foi o excesso de memes mentirosos sobre a doutrina do livre árbitro. Alguns calvinistas mais modernos, por não saberem como lidar com essa nomenclatura, mas sabendo que não poderiam negar seu conceito, passaram a usar o termo "livre agência". Estes queriam se diferenciar do conceito libertário dos arminianos. Certamente, acusamos os arminianos de crerem numa liberdade contrária a Bíblia, pois pensam que o homem é livre tanto para decidir pelo bem quanto pelo mal. Este é o livre árbitro libertário. Por outro lado, algo que os melhores calvinistas clássicos nunca negavam, era o livre árbitro calvinista, este que apontava uma absoluta liberdade de o homem agir segundo a sua natureza. Ora, se sua natureza era caída e má, agente do pecado, logo sua liberdade era toda usada para o mal. Desde o início, o homem foi criado verdadeiramente livre, e não perdeu essa liberdade após a queda. O que ele perdeu foi a capacidade moral de fazer o bem. Mas ele continuou livre para agir segundo a sua natureza. Mas e antes da queda? A natureza do homem não era má e não havia qualquer inclinação ao mal? Esta é uma pergunta que exige uma resposta séria, fundamentada e bem trabalhada. Eu a desenvolvi no meu livro "O Cálice da ira sem mistura: do inferno ao lago de fogo e enxofre). Ali eu responde esse ponto, mostrando o quanto a própria natureza da criação humano apontava para uma fatalidade da queda em algum momento. 

3. Turretine, op. cit., p. 723-724. 

4. Ibid. p. 725 

Rodrigo Caeté

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