A discussão a respeito do Corpus Christi (corpo de Cristo) remonta outra discussão bem acalorada, inclusive dentro do seio protestante: o significado do sacramento da ceia. Antes de vermos essa discussão referente à presença de Cristo na ceia, vejamos um pequeno histórico desta festa da idolatria chamada Corpus Christi.
Em meados do século XIII, uma freira agostiniana chamada Juliana de Mont Cornillon, alegando ter recebido visões de Cristo, disse ao então Papa Urbano IV que, nesta visão, Jesus teria solicitado um destaque público de sua suposta presença física na eucarística, que é a nossa ceia. Diante desse relato, Urbano IV publicou a bula Transiturus, tornando oficial a festa de Corpus Christi em 8 de setembro de 1264, devendo ser celebrada na quinta-feira depois da oitava de Pentecostes. Ou seja, ela acontece sempre 60 dias depois do domingo de páscoa, na quinta-feira seguinte ao domingo da Santíssima Trindade, segundo a tradição católica romana, em alusão à quinta-feira santa, quando Jesus instituiu o sacramento da eucaristia.
E os tapetes? A tradição de enfeitar as ruas com os famosos tapetes representando o pão e o vinho vem de Portugal, ainda durante o período da colonização. Ainda segundo a tradição católica, a prática de procissão sobre os tapetes remete à acolhida de Jesus em Jerusalém, quando as pessoas cobriram as ruas de ramos e mantos para a passagem de Cristo. Embutida nessa crença, ainda está a ideia da peregrinação do povo de Deus, que, desde o Antigo Testamento, caminha em direção à Terra Prometida.
Este, portanto, é um pequeno resumo histórico desta festa católica. Para nós, protestantes, qual é o problema dessa festa? Segundo o catolicismo romano, o sacramento da eucaristia consiste na presença física de Jesus, por isso é chamado de Corpus Christi (corpo de Cristo), uma vez que se acredita que os próprios elementos da ceia se transformam na carne e no sangue de Cristo. Neste caso, a festa de Corpus Christi representa uma vívida, literal e pública adoração aos elementos pão e vinho, como se estivessem adorando a Cristo, o que, de fato, não ocorre. O que estão a fazer é cometer o pecado da idolatria, quando se adora a criação no lugar do Criador:
"pois eles mudaram a verdade de Deus em mentira, adorando e servindo a criatura em lugar do Criador, o qual é bendito eternamente. Amém!" (Romanos 1.25)
Rejeitamos essa prática, portanto, porque cremos que apenas Jesus verdadeiramente deve ser adorado, e porque não acreditamos nessa doutrina da transubstanciação, na qual as substâncias do pão e do vinho são transformadas no corpo e no sangue de Jesus. Com todo esse contexto em mente, vejamos o próximo ponto.
Transubstanciação ou Consubstanciação?
Essa dicotomia é uma das mais conhecidas quando o assunto é a presença de Cristo na ceia. O texto bíblico base para esta discussão é este abaixo:
"Enquanto comiam, tomou Jesus um pão, e, abençoando-o, o partiu, e o deu aos discípulos, dizendo: Tomai, comei; isto é o meu corpo. A seguir, tomou um cálice e, tendo dado graças, o deu aos discípulos, dizendo: Bebei dele todos; porque isto é o meu sangue, o sangue da [nova] aliança, derramado em favor de muitos, para remissão de pecados." (Mateus 26.26-28)
Os defensores da transubstanciação acreditam na literalidade das expressões "isto é meu corpo" e "isto é meu sangue". A concepção dessa doutrina foi formalmente defendida no Quarto Concílio de Latrão, em 1215, e reafirmada no famoso Concílio de Trento (1551), mesmo havendo forte oposição do reformador Martinho Lutero. Eis, abaixo, um trecho dessa defesa no Concílio de Trento:
"Tendo em vista Cristo nosso Redentor haver declarado que era verdadeiramente seu corpo que ele estava oferecendo sob a espécie de pão, sempre foi a convicção da Igreja de Deus, que este concílio reafirma, que pela consagração do pão e do vinho ocorre uma mudança na qual toda a substância do pão se torna a substância do corpo de Cristo nosso Senhor e toda a substância do vinho se torna a substância do seu sangue. À essa mudança, a Igreja Católica dá o nome apropriado e correto de transubstanciação."¹
O contraponto de Lutero não era quanto à literalidade das palavras de Jesus, mas na forma racional como a Igreja católica interpretavam-nas:
"Da minha parte, se não sou capaz de sondar a maneira como o pão é o corpo de Cristo, ainda assim levarei cativo o meu pensamento à obediência de Cristo e, simplesmente me apegando às suas palavras, crerei firmemente não apenas que o corpo de Cristo está no pão, mas que o pão é o corpo de Cristo. Minha justificativa para isso são as palavras: 'tomou o pão; e, tendo dado graças, o partiu e disse: Isto [ou seja, este pão, que ele havia tomado e partido] é o meu corpo' (1Co 11.23-24)."²
Portanto, Lutero cria que Jesus estava literalmente presente durante a ceia, mas não substancialmente. Cristo estaria presente "com, em, sob" o pão e o vinho durante a eucaristia, mas não mais após a celebração, voltando tais elementos (pão e vinho) ao seu estado comum. Esta posição, irmã gêmea da transubstanciação, ficou conhecida como Consubstanciação, pois, embora Lutero acreditasse que pão era apenas pão e vinho era apenas vinho, não havendo mudança nas substâncias, sustentava que a presença física de Jesus, de alguma forma, era real durante a celebração da ceia. Nesse sentido, mesmo se contrapondo à Transubstanciação da Igreja Católica Romana, Lutero defendia a literalidade das palavras de Jesus, acreditando numa presença física, mas não substancialmente nos elementos.
É nesse contexto efervescente que surge outro grande reformador, talvez o mentor intelectual da Reforma, embora Calvino e Lutero tenham levado mais a fama, que foi Ulrico Zuínglio. Infelizmente caminhando para outro extremo da interpretação, este propôs uma visão unicamente símbolica das palavras de Jesus. Sua visão é adotada hoje por muitas igrejas. Zuínglio argumentava que há muitas outras passagens bíblicas nas quais a palavra "é" significa "representa", não podendo, assim, ser interpretada de modo literal. Além disso, ele se valeu das palavras do apóstolo Paulo quando este estava referenciando a ceia:
"Porque eu recebi do Senhor o que também vos entreguei: que o Senhor Jesus, na noite em que foi traído, tomou o pão; e, tendo dado graças, o partiu e disse: Isto é o meu corpo, que é dado por vós; fazei isto em memória de mim. Por semelhante modo, depois de haver ceado, tomou também o cálice, dizendo: Este cálice é a nova aliança no meu sangue; fazei isto, todas as vezes que o beberdes, em memória de mim. Porque, todas as vezes que comerdes este pão e beberdes o cálice, anunciais a morte do Senhor, até que ele venha." (1 Coríntios 11.23-26)
Essa é a razão por que muitas igrejas enfatizam apenas o aspecto memorial, como uma forma de rememorar o sacrifício de Cristo e apontar para a sua volta. Essa terceira visão sobre a ceia ficou conhecida como Memorial, e houve não pouca desavença entre Lutero e Zuínglio sobre esse aspecto interpretativo da ceia.
Por fim, a quarta e última interpretação, a que eu defendo como a mais correta, é chamada de "Presença Espiritual", defendida pelo reformador João Calvino (didaticamente, as 4 interpretações são Transubstanciação, Consubstanciação, Memorial e Espiritual). Calvino nega as 3 visões anteriores, corroborando apenas com Zuínglio no sentido de ser também uma celebração Memorial, mas não apenas isso, mas principalmente totalmente espiritual. Para Calvino, sendo a ceia um sacramento, Jesus estaria presente de fato, mas não fisicamente, nem apenas na memória do participante, mas espiritualmente. O pão e o vinho, portanto, seriam símbolos da presença espiritual de Jesus, que estaria presente para agraciar os santos durante a comunhão. Essa, por exemplo, é a posição adotada pela Confissão de Fé de Westminster:
"Capítulo XXVII – Dos Sacramentos
Em todo o sacramento há uma relação espiritual ou união sacramental entre o sinal e a coisa significada, e por isso os nomes e efeitos de um são atribuídos ao outro. (Referências bíblicas: Gn 17.10; Mt 26.27-28; Tt 3.5)
A graça significada nos sacramentos ou por meio deles, quando devidamente usados, não é conferida por qualquer poder neles existentes; nem a eficácia deles depende da piedade ou intenção de quem os administra, mas da obra do Espírito e da palavra da instituição, a qual, juntamente com o preceito que autoriza o uso deles, contém uma promessa de benefício aos que dignamente o recebem. (Referências bíblicas: Rm 2.28-29; 1Pe 3.21; Mt 3.11; 1Co 12.13; Lc 22.19-20; 1Co 11.2)
Capítulo XXIX – Da Ceia do Senhor
Os elementos exteriores deste sacramento, devidamente consagrados aos usos ordenados por Cristo, têm tal relação com Cristo Crucificado, que verdadeira, mas só sacramentalmente, são às vezes chamados pelos nomes das coisas que representam, a saber, o corpo e o sangue de Cristo; porém em substância e natureza conservam-se verdadeira e somente pão e vinho, como eram antes. (Referências bíblicas: Mt 26.26-28; 1Co 11.26-28)
A doutrina geralmente chamada transubstanciação, que ensina a mudança da substância do pão e do vinho na substância do corpo e do sangue de Cristo, mediante a consagração de um sacerdote ou por qualquer outro meio, é contrária, não só às Escrituras, mas também ao senso comum e à razão, destrói a natureza do sacramento e tem sido a causa de muitas superstições e até de crassa idolatria. (Referências bíblicas: At 3.21; 1Co 11.24-26; Lc 24.6, 39)
Os que comungam dignamente, participando exteriormente dos elementos visíveis deste sacramento, também recebem intimamente, pela fé, a Cristo Crucificado e todos os benefícios da sua morte, e nele se alimentam, não carnal ou corporalmente, mas real, verdadeira e espiritualmente, não estando o corpo e o sangue de Cristo, corporal ou carnalmente nos elementos pão e vinho, nem com eles ou sob eles, mas espiritual e realmente presentes à fé dos crentes nessa ordenança, como estão os próprios elementos aos seus sentidos corporais. (Referências bíblicas: 1Co 11.28 e 10.16)"
A maior evidência de uma presença espiritual de Jesus se encontra no próprio contexto da carta de Paulo que trata desse assunto:
"Por isso, aquele que comer o pão ou beber o cálice do Senhor, indignamente, será réu do corpo e do sangue do Senhor. Examine-se, pois, o homem a si mesmo, e, assim, coma do pão, e beba do cálice; pois quem come e bebe sem discernir o corpo, come e bebe juízo para si. Eis a razão por que há entre vós muitos fracos e doentes e não poucos que dormem." (1 Coríntios 11.27-30)
Peço bastante atenção do leitor para esta conclusão. Paulo recebeu essa revelação do Senhor quanto aos que estavam ficando misteriosamente fracos, enfermos e, eventualmente, morrendo. "Dormir", na linguagem paulina, é um eufemismo para morrer, e o apóstolo explica por que alguns estavam vindo à óbito dentre os coríntios. A razão era a participação da ceia de forma indigna. Assim como os cristãos recebiam o alimento espiritual que era o próprio Cristo, em amor, benevolência e graça, os ímpios travestidos de cristãos que participavam, recebiam o Cristo em injustiça, ira e vingança. É nesse sentido que o Senhor estava punindo alguns com enfermidades ou mesmo morte. Paulo trouxe essa importante revelação em tom de alerta, e são muitos os que ainda hoje não a consideram.
Voltando ao início do texto, quantos são os que, no dia de hoje, Corpus Christi, estão acumulando condenação a si mesmos, não apenas porque estão usando do sacramento da ceia de modo errado, mas também porque estão a adorar a criação no lugar do Criador. Dois são os alertas, portanto: cuidemos quanto à participação da ceia do Senhor; e, quanto aos católicos, cuidado com essa idolatria e banalização da ceia. Deus é um presente vingador.
Notas
1. Disponível em <https://www.ippinheiros.org.br/blog/como-jesus-esta-presente-na-santa-ceia-transubstanciacao-e-outros-posicionamentos/>
2. Ibid.
Rodrigo Caeté
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