A conhecida revista "Ultimato", em seu formato online, veiculou um artigo intitulado "As três maiores contradições bíblicas". Neste artigo, o autor acusa a fé cristã mais conservadora de não questionar certos textos bíblicos que ele apontou estarem em contradição com outros. Meu objetivo, neste texto, é apresentar essas supostas contradições e solucionar esses "problemas" levantados pelo autor, mostrando que a doutrina da inerrância bíblica garante a infalibilidade das Escrituras. Esse não é um ponto qualquer. A discussão sobre a verdade da Palavra é essencial à fé cristã, pois a queda de alguns princípios centrais quanto à veracidade da Bíblia Sagrada já foi a causa de um declínio acentuado do protestantismo mais conservador na Europa. Os mais estudiosos da história da igreja vão rapidamente notar que estou a mencionar o liberalismo teológico do século XIX, com sua postura crítica de abordar a fé cristã, sobretudo a respeito das interpretações bíblicas. Aqueles liberais, influenciados pelos ideais iluministas, começaram questionando a racionalidade de certas passagens mais miraculosas e terminaram negando a Bíblia como a Palavra de Deus. O resultado foi uma Europa antes cristianizada, berço das maiores missões transculturais, mas agora carente de missões e de restauração à fé saudável. O cristianismo europeu, portanto, tombou, mas não sem antes ter feito ruir a estruturas basilares da veracidade das Escrituras Sagradas.
É por essa nebulosa estrada que caminha o autor do texto "As três maiores contradições bíblicas", veiculado na revista Ultimato (Disponível em <https://www.ultimato.com.br/comunidade-conteudo/as-tres-maiores-contradicoes-biblicas>).
Assim ele inicia sua argumentação:
"Não podemos nos colocar como donos da verdade e fecharmo-nos para o diálogo com outros pontos de vista religiosos. Assim, mais uma vez a tradição e os mandamentos de homens tomam lugar daquilo que está claramente ordenado por Deus: amar ao próximo, fazer ao outro o que desejamos que se fizesse a nós mesmos."
Ora, é claro que podemos nos colocar como os "donos da verdade", pois seguimos a única Verdade absoluta (João 14.6). Se seguimos a Cristo como a Verdade revelada, todas as demais pressuposições contrárias à Escritura Sagrada estão logicamente erradas. Portanto, podemos dizer que estamos certos e, ainda assim, manter um diálogo saudável com todos os outros que pensam diferente. E isso nada tem a ver com a irracional conclusão do autor que sugere que se colocar como certo é não amar o próximo como a nós mesmos. Esse pensamento é, infelizmente, fruto dessa geração mais fragilizada e hipersensível, que acha que amar é aprovar tudo e não corrigir nada. No fim, é um pensamento rebelde e antibíblico, pois nega um dos fundamentos da definição de amor:
"Filho meu, não menosprezes a correção que vem do Senhor, nem desmaies quando por ele és reprovado; porque o Senhor corrige a quem ama e açoita a todo filho a quem recebe. É para disciplina que perseverais (Deus vos trata como filhos); pois que filho há que o pai não corrige? Mas, se estais sem correção, de que todos se têm tornado participantes, logo, sois bastardos e não filhos." (Hebreus 12.5-8)
Na cosmovisão do autor do texto da Ultimato, amar é permitir que o outro esteja no erro, nunca dizendo que ele está equivocado. Mas Deus diz que uma das formas de amar é dizer que o próximo está errado quando estiver. É dizer que a verdade é absoluta e ela está apenas na Palavra de Deus. Não ser corrigido é ser tratado como bastardo e filho de Satã. Obviamente que o amor não deseja isso. Por isso, afirmamos a única Verdade bíblica sobre qualquer outro pensamento que contrarie a Escritura. Com relação a sua primeira contradição, assim o autor desenvolve:
"1ª contradição: 'Concluímos, pois, que o homem é justificado pela fé sem as obras da lei' (Rom 3.28); 'Vedes então que o homem é justificado pelas obras, e não somente pela fé' (Tg 2.24). Em sua tradução, Martinho Lutero empurrou a carta de Tiago para o finalzinho da Bíblia, dizem, em função deste problema. Alguns tentam explicar a contradição dizendo: só a fé justifica, mas a fé só, não. Um jogo de palavras que não diz nada e só confunde mais ainda. A contradição é assustadora: basta ter fé, mas a fé sozinha não basta! Não é pelas obras que o homem é salvo, mas ai dele se não tiver obras..."
É realmente assustador o entorpecimento pecaminoso que há na mente do incrédulo, muitos deles se passando de cristãos, pois buscam constantemente se rebelar, consciente ou inconscientemente, contra o Senhor. No que tange ao conhecimento bíblico, já é esperada essa anomalia interpretativa, uma vez que a mente natural não consegue discernir as coisas espirituais (1 Coríntios 2.14). Isso que o autor chamou de contradição jamais fez parte da mente dos autores bíblicos. Paulo, por exemplo, mencionou a fé e as obras como causa e efeito natural:
"Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus; não de obras, para que ninguém se glorie. Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas." (Efésios 2.8-10)
Todo o desenvolvimento do apóstolo até o verso 9 foi magnificando a soberana e eterna graça do Senhor. São versos profundos que exaltam a eleição dos santos. Mas essa eleição é completa, e não deficiente. Ela se manifesta com a santidade. Não é uma eleição divorciada das boas obras. O próprio jesus tratou de viver vida reta e imputar a nós, na cruz, não apenas a fé, como também sua obediência por meio das obras. Portanto, as nossas obras não salvam, porém ratificam nossa justificação. Deus põe isso dessa forma, através de seu servo Paulo, apenas para fazer calar os faltos de senso espiritual na tentativa de interpretar a Bíblia, mas também para evitar uma suposta salvação irresponsável que não se compromete com a santidade. Então, a fé sem obras é realmente morta, pois não é verdadeira. O efeito da eleição sempre serão as boas obras. Nesse sentido, não há nenhuma contradição aqui.
Com relação a segunda contradição encontrada pelo autor, assim ele prossegue:
"2ª contradição: 'E os que estavam comigo viram, em verdade, a luz, e se atemorizaram muito, mas não ouviram a voz daquele que falava comigo' (At 22.9); 'E os homens, que iam com ele, pararam espantados, ouvindo a voz, mas não vendo ninguém' (At 9.7). Afinal os homens que iam com Paulo só viram ou só ouviram algo? Alguns tentam mais uma vez justificar o texto: eles viram uma luz, mas não viram ninguém, eles ouviram um som, mas não entenderam... O fato é que o relato é contraditório. Alguém poderia até dizer que aqueles homens estavam tão assustados que nem eles mesmos sabiam o que foi que viram ou ouviram! Tudo isso aponta para um fato pitoresco que é Jesus aparecendo, após sua ascensão, de forma visível e audível para um homem."
A audácia é tão notória que este autor chega a trazer as explicações corretas a fim de zombar delas, como uma tentativa de desmerecer qualquer refutação nessa linha. Em primeiro lugar, deve ser claro a todos que nenhuma tradução é inspirada pela Espírito Santo. Apenas o texto em sua língua original carrega essa inspiração. Digo isso porque reconheço que há um aparente problema nessas versões que apontam uma suposta contradição. Note que usei as palavras "aparente" e "suposta" justamente por negar qualquer possibilidade de contradição nos textos. Eis, abaixo, novamente os textos:
"Os seus companheiros de viagem pararam emudecidos, ouvindo a voz, não vendo, contudo, ninguém.' (Atos 9.7 - ARA)
"Os que estavam comigo viram a luz, sem, contudo, perceberem o sentido da voz de quem falava comigo." (Atos 22.9 - ARA)
Sabemos que o autor desses 2 versos foi Lucas. Não estamos diante de 2 autores ou 2 narrativas. É 1 autor falando sobre 1 narrativa. No primeiro texto, os companheiros de Paulo "ouviram", mas não "viram", enquanto que, no segundo texto, eles "viram", mas não "ouviram" ou, nessa tradução melhor, "não perceberam o sentido da voz". Para resolvermos esse suposto problema, devemos recorrer a gramática original. Segundo W. F. Arndt, autoridade na língua grega do Novo Testamento, o entendimento gramatical do genitivo ajuda a resolver essa questão:
"A construção do verbo ouvir (akouo) não é a mesma nas duas passagens. Em Atos 9.7, ela é usada com o genitivo, e em 22.9, com o acusativo. A construção com o genitivo simplesmente indica que algum som chegou ao ouvido, sem indicar se a pessoa entendeu ou não o que ouviu. A construção com o acusativo, entretanto, descreve uma audição que inclui uma compreensão mental da mensagem falada. Atos 22.9 não nega que os companheiros de Paulo ouviram certos sons; simplesmente declara que eles não ouviram de maneira que pudessem entender o que fora dito” (Does the BibleContradict Itself, pp. 13,14, disponível em <http://www.cacp.org.br/como-explicar-a-divergencia-entre-atos-9-7-e-22-9/>)
No português, essa forma de colocação é tão comum. Imagine determinada cena:
- "João passou por isso porque não ouviu os conselhos da própria mãe... Agora está sofrendo".
O personagem fictício João certamente ouviu literalmente as palavras de sua mãe, mas não levou para o coração a fim de ter uma mudança de vida. Isso aponta que, no português, "ouvir" pode significar tanto ter a capacidade física de escutar sons quanto a sabedoria de pôr em prática o que foi escutado. No caso dos textos de Atos, um "ouvir" significa a capacidade física de escutar algo, enquanto o outro "ouvir" significa a capacidade intelectual de discernir o que foi dito. Em síntese, Atos 9.7 explica que os companheiros de Paulo apenas ouviram um som, mas nada é dito se eles entenderam ou não o que fora dito. Já em Atos 22.9, nos é dito que aqueles homens até ouviram a voz, mas não entenderam intelectualmente o que estava sendo dito. Onde, então estaria a contradição aqui? Lucas apenas registra esse segundo texto a partir da visão de Paulo, não a visão do apóstolo não contradiz o que Lucas tinha falado antes. São passagens complementares. O ponto conclusivo é que apenas Paulo realmente ouviu e entendeu o que o Senhor falou com ele. Por fim, em relação a ver ou não ver, eles realmente não viram ninguém, mas apenas uma luz. Isso reforça ainda mais a complementaridade dessas passagens. Novamente, portanto, a contradição está apenas na mente do autor da Ultimato.
Finalmente, eis a terceira e última contradição apresentada pelo autor:
"3ª contradição: 'E chegou, e habitou numa cidade chamada Nazaré, para que se cumprisse o que fora dito pelos profetas: Ele será chamado Nazareno' (Mt 2.23). Evidentemente não existe em nenhum dos profetas uma referência ao termo Nazareno. Alguns tentam explicações cada uma mais esquisita do que outra, como por exemplo, que nazareno seria uma variação de nazireu, como se os escritores bíblicos tivessem a língua presa. Outros falam que nazareno é um sinônimo de desprezado, outros de ramo... Mera especulação. Mais nobres, nesse caso, são os que assumem que não sabem explicar de onde vem essa profecia."
Quando se pensa em contradição em um texto, imagina-se textos excludentes em suas ideias, quando um diz o oposto do outro. Ora, onde está a contradição nesse terceiro ponto levantado pelo autor, se ele apresenta apenas um texto bíblico que ele não compreendeu? Quanto ao que foi levantado por ele, podemos responder com os seguintes pontos:
1) É verdade que essa citação não esteve nos escritos de nenhum dos profetas;
2) Mateus não tinha em mente uma citação específica, por isso usou a expressão do plural: "profetas";
3) Negamos, também, que essa expressão - Nazareno - tenha alguma relação com Nazireu como Sansão;
4) E, sim, essa referência muito provavelmente indica a situação humilhante e de desprezo do Messias. Isso explica Mateus ter usado usado "profetas" no plural, já que mais de um profetizou a humilhação de Cristo, como em Isaías 53.
5) Segundo o comentarista D. A. Carson, "Mateus, com certeza, usou 'nazôraios' como forma adjetival de 'apo Nazaret' (de Nazaré ou nazareno), embora o adjetivo mais aceitável seja 'nazarenos'. Provavelmente, 'nazôraios' tem origem na forma aramaico galileia. Nazaré era um lugar desprezado (Jo 7.42,52), até mesmo por outros galileus (Jo 1.46). Lá, Jesus não cresceu 'Jesus, o belamita', com suas nuances davídicas, mas como 'Jesus, o nazareno', com todo o opróbrio do escárnio. Quando, em Atos, os cristãos são mencionados como 'seita dos nazarenos' (24.5), a expressão tem intenção de ofender." (CARSON, D.A. O comentário de Mateus. São Paulo: Shedd Publicações, 2010, p.126)
Portando, essa expressão dada a Jesus era uma forma de escárnio e zombaria, exatamente como os profetas do Antigo Testamento já falara. Novamente, provou-se infundada a acusação de contradição feita pelo autor da Ultimato.
Mas não há nenhuma contradição nas Escrituras Sagradas?
Não. Sendo ela a perfeita Palavra de Deus, não podemos dizer que Deus se contradiz ou erra. Podemos achar contradição em traduções erradas, mas jamais nas palavras originais do Senhor. Para afirmarmos alguma contradição na Bíblia, precisamos assumir um desses dois pontos: 1) A Bíblia não é, mas apenas contém a Palavra de Deus; 2) Deus se contradiz, sendo, portando imperfeito. Seja qual for a posição adotada, ambas deturpam o entendimento bíblico de quem é Deus e o que é a sua Palavra.
Muito daquilo que alguns chamam de contradição nada mais é que diferentes perspectivas que se complementam, como ocorre bastante nos Evangelhos. Isso ocorre quando temos várias testemunhas narrando uma mesma cena. Uma descreve certo ângulo, enquanto outra omite esse certo ângulo para dar ênfase a outro. Isso não é contradição, mas apenas diferentes perspectivas de uma mesma situação sob a ótica de variadas testemunhas. No fim, temos uma imagem mais rica e completa.
Essa variedade de perspectivas é um bom exemplo de como a inspiração divina não anulou a personalidade humana. Jeito literário e estilo linguístico foram usados pelo Senhor nesse processo de inspiração. Encontramos, por exemplo, tanto um grego rebuscado, com uma gramática impecável, quanto um grego de um pescador que não é um grande sábio da língua. Nada disso, contudo, impactou na inerrância bíblica.
Reconhecer que não há contradição na Bíblia significa dizer que todos os textos são facilmente entendíveis? É claro que não. Deus não objetiva, com a Bíblia, nos explicar tudo sobre tudo. Algumas coisas ele decidiu não nos revelar (Deuteronômio 29.29); outras ele decidiu nos revelar progressivamente, nos incitando ao estudo na Escritura, mas nem tudo é fácil, conforme o próprio apóstolo Pedro disse:
"e tende por salvação a longanimidade de nosso Senhor, como igualmente o nosso amado irmão Paulo vos escreveu, segundo a sabedoria que lhe foi dada, ao falar acerca destes assuntos, como, de fato, costuma fazer em todas as suas epístolas, nas quais há certas coisas difíceis de entender, que os ignorantes e instáveis deturpam, como também deturpam as demais Escrituras, para a própria destruição deles." (2 Pedro 3.15-16)
Uma coisa é ser difícil, mas outra totalmente diferente é ser contraditório. Quanto a esses que buscam deturpar a Bíblia, imputando-lhe contradição, Pedro chama de ignorantes e instáveis, que estão caminhando para a própria destruição.
Como cristãos, defendemos a irrerrância bíblica, sobre a qual está o fundamento de que nela não contém um único erro; defendemos a sua infalibilidade, e afirmamos que é impossível, pela natureza de sua origem, que ela erre, pois Deus não erra. Defendemos, ainda, a inspiração plena da Escritura, de uma tal forma que toda ela é a Palavra de Deus. Assim creio, e sobre essa verdade está a minha fé.
Rodrigo Caeté
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