Quando os teólogos defendem a impassibilidade de Deus, estão a defender não apenas a sua imutabilidade, como também a sua perfeição. Dizer, por exemplo, que Deus é amor é dizer que o amor de Deus é perfeito assim como Deus é perfeito. Sendo isso verdade, como é, torna-se impossível haver variação no amor divino. Não existe isso de ora Deus me ama mais, ora menos. Quando acredito que Deus está me amando menos por conta de um pecado que cometi, estou internamente fazendo ruir as doutrinas da perfeição, imutabilidade e impassibilidade. A mesma aplicação devemos fazer em relação a sua misericórdia, compaixão, ira, ódio, e qualquer outro atributo divino. Mas alguns desses atributos não estariam revelando uma paixão em Deus? Um Deus que se ira e sente indignação todos os dias (Salmo 7.11) parece estar sendo movido em reação à maldade dos perversos. Como explicar, portanto, algumas reações aparentemente emocionais de Deus?
Antes de seguir, eu gostaria de deixar registrado abaixo, como forma de base para a minha defesa, algumas citações de alguns documentos de fé sobre o tema. A Confissão de Fé de Westminster, no capítulo 2, sobre "de Deus e da Santíssima Trindade", diz o seguinte:
"Há um só Deus vivo e verdadeiro, o qual é infinito em seu ser e perfeições. Ele é um espírito puríssimo, invisível, sem corpo, membros ou paixões; é imutável, imenso, eterno, incompreensível, - onipotente, onisciente, santíssimo, completamente livre e absoluto, fazendo tudo para a sua própria glória e segundo o conselho da sua própria vontade, que é reta e imutável. É cheio de amor, é gracioso, misericordioso, longânimo, muito bondoso e verdadeiro remunerador dos que o buscam e, contudo, justíssimo e terrível em seus juízos, pois odeia todo o pecado; de modo algum terá por inocente o culpado."
A Confissão defende a doutrina da impassibilidade de Deus quando usa a expressão "sem...paixões". Um pouco antes, no entorno temporal da Reforma Protestante, a Igreja da Inglaterra, em sua declaração dos 42 artigos e 39 artigos, defendeu a mesma impossibilidade de paixão no Senhor. O mesmo podemos dizer dos artigos irlandeses de 1615 e das principais confissões puritanas. Fato é que essa doutrina, embora pouco debatida e aprofundada atualmente, sempre foi um consenso durante a história da igreja, sendo defendida pelas principais confissões de fé. Segundo o teólogo Herman Bavinck,
"Aqueles que pregam qualquer mudança em Deus, seja em relação à Sua essência, conhecimento ou vontade, diminuem todos os Seus atributos: independência, simplicidade, eternidade, onisciência e onipotência. Isso rouba de Deus a Sua natureza divina e rouba a religião de seu firme alicerce e conforto seguro."¹
Então, em princípio, deve ficar claro que Deus ser imutável estabelece a doutrina da impassibilidade do Senhor. Ele não tem sentimentos como nós. Deus não é afetado por absolutamente nada. Nenhuma oração nossa, por exemplo, por mais fervorosa que seja, pode mudar os decretos divinos, ou mesmo fazê-lO se entristecer, se arrepender ou se alegrar. Deus é fundamentalmente impassível. Todavia, como coadunar esse fundamento com o Deus compassivo que conhecemos na Santa Escritura? Como ele pode ser impassível e compassivo ao mesmo tempo? O conhecido escolástico Anselmo de Cantuária (1033-1109), depois de se debruçar longamente nos argumentos lógicos sobre a existência de Deus, dedicou-se a explicar alguns pontos da relação entre compaixão e impassibilidade divinas. Em um de seus desenvolvimentos mais espetaculares sobre essa questão da natureza de Deus, assim ele disse:
"Mas como tu podes ser compassivo e, ao mesmo tempo, impassível? Pois, se és impassível, não sentes simpatia; e, se não sentes simpatia, teu coração não se aflige pelos desventurados, visto que isso seria compaixão. Mas, se tu não és compassivo, de onde vem tamanha consolo para os desventurados? Como, portanto, podes ser compassivo e não compassivo, ó Senhor, a menos que sejas compassivo em termos de nossa experiência e não de tua existência. Certamente, és assim em termos de nossa experiência, mas não da tua própria. Pois, quando contemplas a nossa desventura, nós experimentamos o efeito da compaixão, mas tu não experimentas tal sentimento. Logo, tu és tanto compassivo por salvares os desventurados e poupares os que pecam contra ti, quanto impassível por não seres afetado de simpatia pela desventura."²
Uau! Que síntese brilhante. Se isso foi produzido por alguém que viveu na chamada "Idade das Trevas", imagina o que se poderia denominar a nossa era. Anselmo conseguiu unir a misericórdia divina com sua impassibilidade. O Deus que sempre tem compaixão diante de nossa miséria não é afetado como quem tem o defeito da mutabilidade, mas apenas reage manifestando o seu firme atributo de amor, que se expressa também em compaixão e misericórdia. Como estamos imersos nessa explosão de sentimentos, e ainda afetados pelo pecado, não conseguimos tatear com perfeição esse conhecimento de um ser perfeito que não sente, como quem muda e sofre variação interna, e, ao mesmo tempo, faz que sintamos os efeitos de sua compaixão. Esta sua compaixão não é o que Deus sente em sua natureza, no sentido de sentir arrepios diante de nossa miséria. Antes, essa compaixão é um belo reflexo de seu atributo de misericórdia, que se manifesta diante de nossa clara desventura. Nesse sentido, podemos dizer que Deus é ao mesmo tempo compassivo e não compassivo, misericordioso e impassível, quem reage diante de nossa dor, mas sem ser afetado em sua natureza.
Foi por esse mesmo caminho de correlação que andou o grande Tomás de Aquino:
"A misericórdia máxima devemos atribuí-la a Deus; mas, quanto ao efeito, e não quanto ao afeto da paixão. Para evidenciá-lo, é mister considerar que misericordioso é quem possui coração comiserado, por assim dizer,
contristar-se com a miséria de outrem, como se fora própria e esforçar-se por afastá-la como se esforçaria por afastar a sua própria. Tal é o efeito da misericórdia. Ora, não é próprio de Deus contristar-se com a miséria de outrem."³
Por essa trilha também segue o reformador João Calvino:
"Embora ele esteja além de todo estado passional, no entanto, testifica que se ira contra os pecadores [...] quando ouvimos que Deus se ira, não devemos imaginar que exista nele qualquer emoção [...] devemos considerar essa expressão como tomada de nosso
prisma [...] não se reverte nele nem o plano, nem a vontade, nem se oscila seu sentimento."⁴
Uma das principais objeções levantadas quanto a essa doutrina é o grande número de exemplos bíblicos onde vemos Deus se irando, se arrependendo, amando, sentindo indignação, fúria, agindo com zero, misericórdia, graça, etc. Não são essas coisas expressões de sentimento? Obviamente. Mas, como os teólogos costumam dizer, estas são expressões de efeito, e não de afetação. Tudo isso que flui de Deus não é porque ele foi afetado diante do que viu ou ouviu, mas porque a perfeição dívida estabelece modos diversos de Deus se manifestar, sem que ele esteja mudando segundo o clamor humano. Nós não causamos efeitos na experiência divina, mas experimentamos esses efeitos divinos que Deus nos faz experimentar. Muitos desse efeitos, nós encontramos nomes em nossa própria experiência de sentimento. Dizemos que Deus sente ira ou se arrepende, mas partimos de nossa própria experiência muitas vezes para entender tal ação divina, o que constitui um erro. A ira de Deus é diferente da nossa. Nós reagimos com afetação, diante do que vemos ou ouvimos, mas Deus não. Ele se ira sim diante do que vê ou ouve, mas sem ser afetado como nós. Ele age segundo seu próprio atributo de justiça. Quanto a muitas dessas ações divinas, o próprio Deus se permitiu ser entendido a partir da linguagem humana, através de nossos próprios sentimentos. Chamamos isso de antropopatia, que é quando atribuímos a Deus sentimentos humanos, tais como se arrepender ou se irar. Quanto a isso, assim discorreu o puritano John Owen:
"Todos concordam que aquelas expressões de 'arrependimento', 'sofrimento' e coisas semelhantes são figurativas. Quando essas palavras são usadas com referência a Deus, elas não intencionam as afeições que significam quando se referem às naturezas criadas, mas apenas um evento de coisas como essas que procede de tais afeições."⁵
Owen está dizendo que tais palavras antropopáticas estão a expressar as reações da natureza de Deus, sem que seja algo exatamente da forma como conhecemos em nossa própria experiência. Em resumo, todos esses teólogos e confissões citados estão defendendo é a fundamental doutrina da imutabilidade, através da qual flui a da impassibilidade. No entanto, esta não impõe a Deus uma natureza insensível ou ausente de sentimento diante de seus filhos. Deus nos ama, e nenhum eleito duvida disso. Não há como olhar para o evento da cruz e não ver o amor divino. Mas não fomos nós que provocamos esse amor, pois isso fluiu da própria natureza de Deus. Deus nos ama porque ele é amor. Nós sentimos esse efeito do amor e somos agraciados com a salvação eterna. É isso que significa Deus ser ao mesmo tempo compassivo e impassível. Ele é todo terno de misericórdia, de amor e, por que não dizer, de carinho. Afinal, ele é o nosso Pai. Todavia, tudo isso é apenas um efeito natural de quem Deus é, e não porque assim o provocamos.
Notas:
1. Disponível em <https://www.oestandartedecristo.com/2019/08/14/o-que-e-a-impassibilidade-de-deus-definindo-um-atributo-esquecido-james-renihan/#_ftnref3>
2. OLSON, Roger. História da Teologia Cristã: 2000 anos de tradição e reformas. São Paulo: Editora Vida, 2001, p. 337.
3. Trecho retirado do artigo "A Impassibilidade e o Sofrimento de Deus", de Carlos Henrique do Nascimento Barros.
4. Ibid.
5. Disponível em <https://www.oestandartedecristo.com/2019/08/14/o-que-e-a-impassibilidade-de-deus-definindo-um-atributo-esquecido-james-renihan/#_ftnref3>
Rodrigo Caeté
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