Pular para o conteúdo principal

Bebês que morrem são salvos?


Essa é uma das perguntas que mais mexem com o nosso estado emocional, a depender das respostas. Isso porque, normalmente, olhamos para os nossos pequeninos de forma terna e sentimental, e, por mais que vejamos claramente a face da depravação em suas ações, temos a tendência de inocentar todas as suas práticas porque dizemos que elas ainda não têm consciência de seus pecados. Ora, o que a Bíblia tem a dizer sobre isso? Todo bebê, então, seria salvo? 

Inicialmente, devo pontuar que nosso compromisso, como teólogo, não é, em primeiro lugar, com o nosso estado emocional e afetivo, mas com o que a Santa Palavra diz. Portanto, não será uma preocupação minha se alguma determinada verdade mexer com os ânimos dos leitores. Minha preocupação principal será ser fiel a Escritura, buscando a interpretação mais saudável possível. 

Outro ponto que vale ressaltar é que essa não é uma questão fechada dentro da linha reformada. Alguns dos melhores teólogos divergem nesse ponto. Dentre eles, há apelo apelo emocional em favor da eleição de todo bebê que morre, assim como há defesa teólogo do mesmo ponto. Mas há também aqueles que asseveram que bebês são condenados também, pois são dignos do inferno como qualquer outro ser humano. Veja, por exemplo, o que diz a Confissão de Fé de Westminster: 

"As crianças que morrem na infância, sendo eleitas, são regeneradas e por Cristo salvas, por meio do Espírito, que opera quando, onde e como quer. Do mesmo modo são salvas todas as outras pessoas incapazes de serem exteriormente chamadas pelo ministério da palavra." (CFW X.III) 

Segundo o teólogo João Alves dos Santos, da Igreja Presbiteriana no Norte dos Estados Unidos, quanto a este ponto da CFW, no início do século XX, acrescentou um anexo interpretativo, dizendo o seguinte: 

"Em referência ao capítulo X, seção 3, da Confissão de Fé, não se deve pensar, por causa da linguagem ali empregada, que os que morrem na infância se percam. Cremos que todos esses são incluídos na eleição da graça e são regeneados e salvos por Cristo, mediante o Espírito que opera quando, onde e quando quiser"¹ 

Vejam que a CFW, ao lado da Igreja Presbiteriana, caminham em direção a apontar a salvação de todos os bebês. Por outro lado, teólogos mais de linha supralapsariana, como, por exemplo, Vincent Cheung, pensam totalmente diferente: 

"A posição popular de que todas as crianças são salvas é uma ilusão e continua como uma tradição religiosa infundada. Aqueles que afirmam a doutrina da eleição nunca foram capazes de estabelecer que todos aqueles que morrem como crianças são eleitos. Seus argumentos são forçados e falaciosos. E aqueles que rejeitam a doutrina bíblica da eleição carecem até mesmo disso para fabricar uma doutrina de salvação infantil. Portanto, a invenção engana as massas e lhes oferece esperança baseada em mera fantasia. A maneira de confortar os pais enlutados não é mentir para eles, mas instruí-los a confiar em Deus. Tudo o que Deus decidir deve ser certo e bom. Pode ser difícil devido à sua dor e fraqueza no momento, mas se os pais não puderem finalmente aceitar isso, que Deus está sempre certo, então eles próprios estão indo para o inferno e precisam se tornar cristãos."² 

Minha intenção, portanto, com esse texto, mais do que fechar um ponto, é provocar uma reflexão pessoal diante dos textos e argumentos apresentados. Comecemos pelo argumento lógico: 

Argumento lógico:

1) Todos pecaram e são dignos do inferno (Romanos 3.23);
2) Os bebês fazem parte do todo, nascendo também em pecado (Salmo 51.5)
3) Logo, todo bebê merece o inferno. 

Essa seria, dentro do argumento lógico, uma regra geral. O que se deve buscar, para confirmar essa conclusão, é se a Bíblia oferece alguma exceção. Antes de procurarmos isso, devemos concluir que, dentro dessa regra, o mesmo que se aplica aos adultos se aplicaria também aos bebês. Se a graça salvífica alcançou alguns eleitos, da mesma forma alcançaria alguns eleitos dentre os bebês eleitos. Dito isso, passemos para os aspectos bíblicos. 

Há, no Antigo Testamento, alguma referência sobre a eternidade dos bebês? 

2 Samuel 12.22-23: "Respondeu ele: Vivendo ainda a criança, jejuei e chorei, porque dizia: Quem sabe se o Senhor se compadecerá de mim, e continuará viva a criança? Porém, agora que é morta, por que jejuaria eu? Poderei eu fazê-la voltar? Eu irei a ela, porém ela não voltará para mim." 

O contexto desses versos é a morte de seu filho, fruto de seu adultério com Bate-Seba. Davi chorava, jejuava, orava, mas nada adiantou. A criança morreu, e seus servos foram dar a triste notícia a Davi. No texto aqui expresso, vemos a sua resposta, e algo salta os olhos. Ele disse: "Eu irei a ela, porém ela não voltará para mim." Quando ele diz que irá a ela, seria isso um indicativo de que esse bebê estaria salvo? 

Não são poucos os teólogos que inferem a salvação de bebês a partir dessa passagem bíblica. Entretanto, conquanto seja possível essa inferência, não creio que seja a mais provável. O que significa a expressão "eu irei a ela"? Alguns teólogos dizem que Davi está apenas apontando o caminho de todos nós: a sepultura. Nesse sentido, a ideia seria: eu irei pelo mesmo caminho do morto, mas o morto não voltará a mim. Essa interpretação é a mais provável porque a mesma expressão usada aqui é usada em outros textos que favorecem essa conclusão: 

"Eu vou pelo caminho de todos os mortais. Coragem, pois, e sê homem!" (1 Reis 2.2) 

"Tudo quanto te vier à mão para fazer, faze-o conforme as tuas forças, porque no além, para onde tu vais, não há obra, nem projetos, nem conhecimento, nem sabedoria alguma." (Eclesiastes 9.10) 

Além desses textos, o próprio contexto indica que na mente de Davi não estaria nada referente ao Céu. Ele diz que, quando a criança estava viva, fez de tudo para a sua sobrevivência, mas que, agora que morreu, não há mais nada que fazer. Ele estava aceitando a punição divina, aceitando a morte e dizendo que a criança não irá voltar a viver, pois ali estava a mão disciplinar do Senhor diante de seu pecado de adultério. Todo o contexto gira em torno de morte física e sepultura, e nada de eternidade e esperança do reencontro. Por isso, não creio que esse texto favorece a interpretação de salvação de bebês na infância. 

E quanto ao Novo Testamento? Há textos ali que favorecem essa interpretação? 

Algumas passagens geram grande discussão sobre a eternidade dos infantes. Se há uma escassez de referência no Antigo Testamento quanto ao tema, não podemos dizer o mesmo do Novo Testamento: 

Lucas 1.41: "Ouvindo esta a saudação de Maria, a criança lhe estremeceu no ventre; então, Isabel ficou possuída do Espírito Santo." 

As primas Isabel e Maria estavam grávidas na mesma época. Aquela esperava João Batista, e esta, Jesus Cristo. Certa vez, se encontraram e João Batista se estremeceu no ventre. Seria esse um indicativo de bebê salvo ainda no ventre? João se estremeceu diante da presença de Jesus no outro ventre. E sabemos que João seguiu o caminho da salvação. O que devemos concluir? Esse é um exemplo de salvação de bebês, mas isso não conclui sobre a salvação geral de todos os bebês. João Batista se estremeceu, mas Maria deve ter passado ao lado de outras grávidas. Será que todos se estremeceram? Ou só os eleitos? Aqueles que não se estremeceram eram reprovados? Notem, ainda, que alguns podem dizer que esse texto favorece a condenação de outros bebês, já que foi necessário um encontro com Cristo para a salvação de João Batista. Vejam, então, que não é possível concluir uma doutrina a partir de um exemplo isolado. Devemos buscar confirmação em outros lugares. Portanto, creio que não devemos encerrar a salvação de bebês a partir desse texto apenas.

Lucas 18.15-16: "Traziam-lhe também as crianças, para que as tocasse; e os discípulos, vendo, os repreendiam. Jesus, porém, chamando-as para junto de si, ordenou: Deixai vir a mim os pequeninos e não os embaraceis, porque dos tais é o reino de Deus." 

Há outras passagens paralelas a essa, mas apenas essa análise já será suficiente, uma vez que a interpretação dada aqui será a mesma de outras de Jesus com as crianças. Essa, sem dúvida, é o texto mais citado para a defesa da salvação infantil. Dizem que quando Jesus afirma que o Reino dos céus pertence às crianças, ou quando Ele diz que é necessário ser como uma criança para herdar o reino dos céus, Ele está a garantir a salvação de todos os infantes. Vejamos, então, se essa visão se sustenta. 

1) Algumas crianças estavam sendo trazidas para serem abençoados por Jesus também, mas os discípulos próximos estavam impedindo o acesso delas a Ele; 

2) Jesus, então, repreende esses discípulos, dizendo que eles não deveriam impedir que tais crianças se aproximassem dele, pois o reinos dos céus também pertencia a elas. Nesse primeiro momento, devemos entender que esta afirmação de Cristo é mais uma repreensão que uma generalização sobre a salvação das crianças; 

3) Cristo está a dizer que ele não veio apenas para os adultos, mas também para as crianças. Elas não poderiam ser impedidas de se aproximarem dele, seja para ser curada, abençoada ou salva, pois também são pecadoras. Em outras palavras, Jesus estaria dizendo que elas também precisavam dele para serem salvas. 

Seguindo por essa esteira interpretativa, creio que o ponto de Jesus não era dizer se crianças serão salvas ou não, mas dizer que elas também fazem parte do grupo dos eleitos. 

4) Se Jesus estivesse ensinado que todos os bebês são salvos, ele estaria em contradição com ele mesmo em outras partes das Escrituras que asseguram a impossibilidade da perda de salvação. Isso porque se todo bebê é salvo, quando cresce não deveria perder a salvação. Mas não é o que se revela, já que nem todo ser humano é salvo, mas um dia foi bebê. Portanto, como negamos a doutrina da perda da salvação, devemos, logicamente, negar a ideia de salvação automática dos infantes sem a eleição de Jesus. 

Há, ainda, outro argumento que precisamos lidar. Como bebês poderiam se arrepender de seus pecados para serem salvos, se a eleição é ratificada através da proclamação verbal do Evangelho? Bebês têm consciência para expressar arrependimento? Certamente não. Mas quem disse que o requisito para o reconhecimento do pecado é a consciência? Ora, já vimos, em Romanos 3.23, que todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus. Além disso, Paulo ainda afirma: "Portanto, assim como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado, a morte, assim também a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram." (Romamos 5.12) A Escritura continua generalizando, sem diferenciar idade: "Todos se extraviaram e juntamente se corromperam; não há quem faça o bem, não há nem um sequer." (Salmo 14.3). Em nenhum lugar das Escrituras é dito sobre essa diferença de idade ou necessidade de consciência para que o homem tenha pecado. Ademais, conquanto se diga que a salvação seja pela graça, mediante a fé, essa fé não é, em última análise, uma expressão que brote do coração humano, mas um presente de Deus, este que o autor e consumador da nossa fé (Hebreus 12.2). Isso significa que a graça da salvação foi ser dada àqueles que não apresentam um grau de consciência para expressar fé, justamente porque o Deus que concede soberanamente a graça também concede a fé, e tudo isso não vem de nós, mas é dom de Deus (Efésios 2.8). 

Diante de tudo o que vimos até aqui, o que podemos concluir? 

1) Todos pecaram, e o pecado não enxerga idade; 

2) Todos necessitam na graça salvífica, e essa graça alcança a todos os eleitos, independente de idade; 

3) Crianças também precisam ir a Cristo para serem salvas; 

4) Todos os bebês salvos receberam o dom da eleição; 

5) Isso não significa todo bebê que morre é eleito. Deus pode conceder a eleição a todo bebê bebê morre? Pode! Mas não será porque eram inocentes ou porque não tinham consciência de seus pecados, mas unicamente pelos méritos de Cristo 

6) Bebês podem, então, ir para o inferno? Sim. Mas não apesar de sua falta de consciência ou por sua inocência, mas porque nasceram em pecado. 

7) Pais cristãos, que perderam seus bebês, podem crer que seus filhos estão na glória? Sim. Bebês de pais cristãos fazem parte do parto. Todavia, fazer parte do pacto não é garantia, nem pra adulto, de eleição. 

Dito isso, encerro dizendo que esse é um assunto teológico que não deve ser tratado desconsiderando as dores de pais que perderam seus bebês. Sabemos que a verdade deve ser dito, e deve ser falada, mas devemos ser sábios e prudentes para devemos a hora e o jeito, e se é necessário. Por fim, não nos compete assegurar a eternidade de ninguém. Se pelos frutos se conhece a árvore, não podemos conhecer que tipo de árvore era um bebê, já que praticamente não tinha frutos claros. Não é errado crer na graça salvífica aos bebês, desde que nossa crença seja que a salvação se deu totalmente pela graça.

Rodrigo Caeté

NOTAS

1. Artigo disponível na Fides Reformata 4/2 1999, com o título "os que morrem na infância: são todos salvos? Uma avaliação teológico-confessional reformada.

2. Disponível em <https://asobrasdevincentcheung.medium.com/salva%C3%A7%C3%A3o-infantil-ef9bf0d82fe6

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Ninguém explica Deus? Uma análise "preto no branco"

Este texto é uma análise da música “Ninguém explica Deus”, da banda Preto no Branco. Esta música tem feito sucesso no meio gospel , e, como a maior parte da música evangélica atualmente, também tem influenciado bastante na teologia nacional. A questão que se levanta é: será que a teologia pregada (Lutero dizia que a música é a teologia cantada) – direta ou indiretamente – por meio dela está correta? Ela está explicando  acertadamente sobre Deus? Sendo sincero com os autores da letra, dá para entender o que eles estavam querendo dizer com esta música. Penso que a ideia é que, em última análise, nenhum ser finito e criado consegue por força própria c ompreender e explicar o SENHOR na Sua totalidade. Isso é um fato indiscutível! A questão é que entre o que se quer dizer e o que se diz pode haver um abismo gigantesco, e é aí que reside o problema! Em suma, a música congregacional existe para que todos, tanto a pessoa simples e menos culta, quanto a que tem um nível est

Santificação Psicológica e Rituais Evangélicos

No nosso arraial evangélico, sobretudo em momentos de retiro espiritual e encontros de casais, é comum depararmo-nos com um ritual chamado “culto da fogueira”. Quem nunca participou de um, não é mesmo? Esse ritual tem o objetivo psicológico de “queimar”, por assim dizer, os nossos pecados cometidos. Não ouso negar sua eficácia emocional, pois eu mesmo já “senti” que meus pecados foram expurgados na hora em que o bendito papel estava sendo queimado. Que momento psicologicamente maravilhoso e emocionante.  Além do “culto da fogueira”, recentemente me deparei também com o ritual “oração a Deus por meio do balão de gás”. A questão era simples: deveríamos escrever nossos pedidos de oração numa pequena folha de papel e colocar dentro de um balão, que seria inflado com gás e subiria “aos céus”. Não duvido que muitos, vendo aquele balão subindo até sumir da vista, sentem que suas orações chegam lá. Que estratégia emocional e psicológica magnífica! Bem, qual é o problema disso tudo? Tudo.  Assi

DA SÉRIE: LOUVORES HERÉTICOS - LINDO ÉS

Existem algumas músicas que falam do desejo de humilhação de quem canta. Geralmente é assim: "Eu quero me humilhar diante de Ti Senhor", ou algo parecido. O grande problema é que o pressuposto desse clamor é um estado natural de exaltação, o que é um equívoco ao se tratar de um ser humano. O único que de fato se humilhou aqui na terra foi Jesus Cristo. Quando Paulo fala em Filipenses que Ele se esvaziou de sua glória e se humilhou, em outras palavras o apóstolo está dizendo apenas uma coisa: ELE SE TORNOU HOMEM! Cristo não deixou os seus atributos divinos justamente porque ele continua sendo 100% Deus; o humilhar-se dele é o SER UM DE NÓS, HUMANO! O ponto é que ser humano já é um estado de humilhação! Já somos por natureza humilhados. Então, meu amigo querido, não existe a opção "quero me humilhar", a não ser que você seja Deus, o que não é o caso. O que existe é: "eu reconheço meu estado triste de humilhação!" Uma boa canção exige uma do