"Portanto, assim como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado, a morte, assim também a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram." (Romanos 5.12)
Em certo sentido, portanto, a ideia de maldição hereditária é bíblica, uma vez que todos nós herdamos o pecado de Adão, sendo passado de pai pra filho, e assim por todas as gerações. Entretanto, rejeitamos a outra ideia de maldição hereditária, aquela propagada principalmente pela ala mais neopentecostal do meio evangélico. Essa seita diz que é possível que uma determinada maldição, ou punição divina, seja passada de pai para filho. Trocando em miúdos, dizem que, se um pai cometeu determinado pecado grave, os filhos e netos podem carregar as consequências do pai, sendo punido por algo que outro praticou. Eles tiram essa interpretação, sobretudo, desses textos abaixo:
"Não as adorarás, nem lhes darás culto; porque eu sou o Senhor , teu Deus, Deus zeloso, que visito a iniquidade dos pais nos filhos até à terceira e quarta geração daqueles que me aborrecem." (Êxodo 20.5)
"O Senhor é longânimo e grande em misericórdia, que perdoa a iniquidade e a transgressão, ainda que não inocenta o culpado, e visita a iniquidade dos pais nos filhos até à terceira e quarta gerações." (Números 14.18)
A leitura desatenta desses versos, sem o devido contexto, pode provocar essas falsa crença da maldição hereditária. Vejamos o texto de Êxodo 20 novamente:
"Não as adorarás, nem lhes darás culto; porque eu sou o Senhor, teu Deus, Deus zeloso, que visito a iniquidade dos pais nos filhos até à terceira e quarta geração daqueles que me aborrecem." (Êxodo 20.5)
Este verso precisa ser interpretado à luz do verso seguido, o 6:
"e faço misericórdia até mil gerações daqueles que me amam e guardam os meus mandamentos."
Ora, aqueles que acreditam nesse tipo de maldição hereditária proposto pela ala neopentecostal creem também que Deus abençoa com misericórdia até mil gerações os filhos dos pais cristãos? Ou só vale no caso das maldições? O que, então, esse texto quer dizer?
Estamos diante de uma figura de linguagem chamada hipérbole, um recurso linguístico usado para transmitir um exagero intencional. Assim como não é literal que Deus calcula mil anos abençoando cada geração de um pai cristão, sem considerar que alguém no meio do caminho passa ser incrédulo, da mesma forma não é literal que Deus amaldiçoa até a quarta geração de um país pecador. O ponto da hipérbole é o que segue: no verso 5, a ênfase está na profundidade e seriedade da punição. Por isso Deus usar uma extensão comparativa longa (terceira e quarta gerações). Deus está mostrando, com isto, a gravidade do pecado, a terrível consequência e o zelo que Ele tem pela santidade. Por outro lado, o verso 6 aponta para a superabundância de sua misericórdia. A comparação hiperbólica com mil gerações indica que sua graça amorosa triunfa sobre seu prazer em punir. É evidente que Deus pune; é claro que Deus satisfaz sua justiça na manifestação de sua ira; todavia, sua misericórdia sempre será triunfante sobre pecadores arrependidos, ainda que seus pecados sejam extensos. Portanto, esse texto nada tem a ver com a dita maldição hereditária. Vejamos o próximo:
"O Senhor é longânimo e grande em misericórdia, que perdoa a iniquidade e a transgressão, ainda que não inocenta o culpado, e visita a iniquidade dos pais nos filhos até à terceira e quarta gerações." (Números 14.18)
O princípio interpretativo quanto à hipérbole é o mesmo. Mas temos alguns versos adiante que testemunham contra a maldição hereditária:
"não entrareis na terra a respeito da qual jurei que vos faria habitar nela, salvo Calebe, filho de Jefoné, e Josué, filho de Num. Mas os vossos filhos, de que dizeis: Por presa serão, farei entrar nela; e eles conhecerão a terra que vós desprezastes." (Números 14.30-31)
Se Deus realmente punisse as gerações futuras por conta dos pecados dos pais, ele não teria dito aqui que os filhos seriam abençoados, entrando na terra prometida através de Josué e Calebe. Deus claramente diz: "eles conhecerão a terra que vós desprezastes." Mas os adeptos da maldição hereditária juram que Deus, na verdade, diz: "Vocês não vão entrar porque os pais de vocês pecaram!" Não é isso, contudo, que o texto diz. O que esses dois textos exaltam é a glória da graça que sempre triunfa sobre a profundidade da depravação humana.
Seguindo adiante, além dessa regra hermenêutica de aplicação do contexto, há uma outra regra que diz que a Bíblia interpreta a própria Bíblia. Com isso em mente, vejamos outro texto, ainda do Antigo Testamento:
"Mas dizeis: Por que não leva o filho a iniquidade do pai? Porque o filho fez o que era reto e justo, e guardou todos os meus estatutos, e os praticou, por isso, certamente, viverá. A alma que pecar, essa morrerá; o filho não levará a iniquidade do pai, nem o pai, a iniquidade do filho; a justiça do justo ficará sobre ele, e a perversidade do perverso cairá sobre este." (Ezequiel 18.19-20)
Não há nada nebuloso aqui. É muito claro que nenhum filho levará a iniquidade do pai. Deus está tão interessado em esclarecer isso que responde esse tópico desde o início do capítulo, para aqueles que já naquela época defendiam a maldição hereditária:
"Veio a mim a palavra do Senhor, dizendo: Que tendes vós, vós que, acerca da terra de Israel, proferis este provérbio, dizendo: Os pais comeram uvas verdes, e os dentes dos filhos é que se embotaram? Tão certo como eu vivo, diz o Senhor Deus, jamais direis este provérbio em Israel. Eis que todas as almas são minhas; como a alma do pai, também a alma do filho é minha; a alma que pecar, essa morrerá." (Ezequiel 18.1-5)
É como se o próprio Senhor estivesse colocando um basta nessa ideia, pois ela tira a responsabilidade individual, além de tornar nula a possibilidade de arrependimento pessoal, já que nada vai adiantar diante de uma maldição hereditária.
Por que, então, o cristão não deve se preocupar com nenhum tipo de maldição hereditária? Justamente porque Jesus já veio para tomar sobre si toda maldição. A Bíblia diz que ele se faz maldito em nosso lugar:
"Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se ele próprio maldição em nosso lugar (porque está escrito: Maldito todo aquele que for pendurado em madeiro)." (Gálatas 3.13)
A maldição da condenação que imperava sobre todo descendente de Adão caiu sobre Jesus, e os eleitos foram, então, libertos dessa maldição. Cristo bebeu a ira de Deus em nosso lugar, e agora não há mais condenação para os que estão em Cristo Jesus (Romanos 8.1).
Aqueles que conhecem a verdade já estão livres:
"e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará." (João 8.32)
Enquanto alguns se utilizam desse verso para proclamar uma verdade de palavra e transparência, o texto ainda continua sendo o mesmo: a verdade é uma pessoa, e se chama Jesus Cristo (João 14.6). Aqueles, portanto, que conhecem a Cristo estão livres e não têm razão para nenhuma preocupação com maldição hereditária.
Por fim, o leitor atento se lembrará que iniciei esse texto citando Romanos 5.12, e dizendo que todos nascemos debaixo dessa maldição como herança de Adão. Agora, desejo encerrar citando o mesmo capítulo 5 de Romanos:
"Se, pela ofensa de um e por meio de um só, reinou a morte, muito mais os que recebem a abundância da graça e o dom da justiça reinarão em vida por meio de um só, a saber, Jesus Cristo. Pois assim como, por uma só ofensa, veio o juízo sobre todos os homens para condenação, assim também, por um só ato de justiça, veio a graça sobre todos os homens para a justificação que dá vida. Porque, como, pela desobediência de um só homem, muitos se tornaram pecadores, assim também, por meio da obediência de um só, muitos se tornarão justos." (Romanos 5.17-19)
Que graça triunfante! Que amor ofegante! Cristo não apenas tomou sobre si nossa maldição, quebrando nossa herança maldita de Adão, como também nos garantiu uma nossa herança: a sua justiça e o deleite da vida eterna. Agora que estamos em Cristo, temos herdado a graça da vida. Portanto, sobre nós não há mais nenhum vestígio de maldição. Entretanto, sobre aqueles que permanecem em rebelião contra o Senhor repousa a antiga mas sempre atual maldição hereditária do primeiro Adão.
Rodrigo Caeté
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