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A ética da gratidão


Depois de um longo período de inatividade por aqui, desejo começar 2023 refletindo sobre a ética da gratidão. Imagine essa cena: um amigo te convida para lanchar e diz que será tudo por conta dele. Após o lanche, você diz: "estou te devendo uma..." Ora, em nosso cotidiano, sabemos que isso é mais comum do que imaginamos, pois há um impulso natural de querermos retribuir o bem feito a nós. Aqui está configurado um efeito da gratidão, quando desejamos pagar ao próximo aquilo que recebemos de graça. Com isso em mente, passemos a refletir sobre a graça do Evangelho e nossa gratidão a Deus. 

Comumente ouvimos que a nossa santificação é uma forma de expressarmos nosso amor e gratidão a Deus diante de seu sacrifício na cruz por nós. Ao menos, os cristãos sentem uma chama no coração por querer ser santo a um Deus santíssimo que mostrou seu amor por nós. Assim como não há erro nenhum em querermos retribuir um lanche a um amigo, da mesma forma não é errado sermos gratos a Deus através da piedade prática. Mas onde estaria, então, o problema? A ética da gratidão conforme aprendemos carrega alguma pressuposição equivocada? Quero sugerir que sim. 

Quando um amigo ofereceu pagar seu lanche, sendo ele um verdadeiro amigo, não visava receber em troca outro lanche. Ele ofereceu graça. Seu lanche foi grátis, embora ele tenha pago. Quando nossa reação natural é um "estou te devendo uma", sem percebermos transformamos a graça em uma espécie de transação, e aquilo que era grátis vira uma dívida. Não, não quero problematizar algo bom entre as relações humanas. Na verdade, desejo que isso continue, mas não com a mesma pressuposição quando aplicamos ao Evangelho da Graça. Notou o que pode ocorrer quando usamos o mesmo critério em relação a nossa gratidão através da santificação? Tendemos a transformar a santificação em prática das boas obras que pagarão a dívida do que Jesus fez na cruz. Por mais que saibamos que nossa redenção tenha sido pela graça, pelos méritos de Cristo, sem qualquer participação nossa, vivemos a buscar uma justificação velada que, de certa forma, agrada nossa consciência culpada. Assim sendo, o presente da graça deixa de ser presente e se transforma em transação comercial. Aqui está a peridosa teologia das obras. 

É fato que a fé que salva é a mesma que produz piedade, isto é, a fé sem obras é morta. Mas essa fé deve produzir em nossa coração um sentimento de gratidão que seja puro e bíblico. A graça não nos torna um devedor a Deus, como alguém que precisa retribuir um lanche. Deus de fato quis nos amar porque ele é amor. Sua redenção foi perfeita, sem qualquer resquício de interesse mesquinho. Ele nos amou e ponto. E quem pagou o lanche foi ele. Ele pagou a dívida a si mesmo. A nossa gratidão, agora, não pode ser mais como a de alguém que quer retribuir algo, mas por amor puro e genuíno, com um profundo sentimento de que qualquer obra de santificação jamais será como pagamento de nossa dívida eterna. Vamos a Deus como filhos que obedecem ao Pai por amor. Não há transação, interesse ou desejos posteriores como resultado da obediência. A nossa relação não é deste mundo. E nossa gratidão carrega uma ética suprema. Sim, somos gratos, e muito gratos, mas expressamos isso diferente de como o mundo conhece. A nossa transação já foi paga, a graça aniquilou as obras interesseiras, e nos restou a graça do amor e a gratidão em santificação.

Rodrigo Caeté

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